A PRIMEIRA NOITE DE CRIME
( THE FIRST PURGE )
CRÍTICA
“Intenso e infelizmente, com um terrível fundo de verdade”
Quando um novo partido político, o New Founding Fathers of
America, ascende, é anunciado um novo experimento social. São 12 horas sem lei,
em que o governo incentiva as pessoas a perderem toda e qualquer inibição. A
participação não é obrigatória, mas como estímulo, 5.000 dólares é dado para
quem fica na cidade, e mais prêmios para quem participa.
Em 2013, o diretor norte-americano James DeMonaco inovou no
mundo do suspense cinematográfico ao criar uma das franquias de maior sucesso
dos últimos anos no gênero. “Uma noite de crime” ( Purge, no inglês ) contava a
história de um futuro alternativo onde os cidadãos americanos saem as ruas para
comemorar o Dia da Purificação, que nada mais é que uma noite, mais
precisamente todo dia 21 de março, onde todos os crimes são permitidos por um
período de 12 horas. Durante essa noite sem fim, todos os cidadãos estão a
mercê de seus próprios vizinhos, amigos e demais moradores de sua cidade.
Absolutamente tudo é permitido, desde estupros a homicídios
em massa. Muito sangue e carnificina da melhor qualidade rolando pelas ruas
estadunidenses. E tudo isso para que?
Bom, no longa é explicado que com uma purificação anual, as
pessoas iriam extravasar toda sua raiva e permaneceriam puras durante todos os
outros 364 dias do ano; fato que contribuiria
para a redução da violência, do desemprego e da crise financeira que
assolava o país. E sabe-se lá o porquê, a Purificação funciona, e passa a ser
um feriado contínuo do calendário americano, e oficializado pelos Novos Pais
Fundadores da América ( NFFA, no inglês ), o governo que idealizou o projeto e
usou-o como forte bandeira durante a eleição presidencial que conquistaram.
“Uma noite de crime” foi um sucesso de bilheteria e dele
foram produzidos mais duas sequências, igualmente bem sucedidas. A cada filme,
James DeMonaco, roteirista e produtor de
todos os filmes da franquia explorava o quão podre e maldoso o governo dos NFFA
era. Com direito a caçadas humanas para um seleto clube de poderosos da alta
sociedade, e muita diversão dos ricaços ao ver os mais pobres sendo arrebatados
pelas ruas das periferias.
No entanto, James deixou para o quarto filme, a explicação
de como todo esse jogo doentio foi criado pelos Novos Pais Fundadores da
América, e o verdadeiro motivo das pessoas aderirem a essa brutalidade. E como
fã da franquia desde seu primeiro filme, devo admitir que “A primeira noite de
crime” não decepciona nem um pouco.
O governo sempre no controle
O PRINCÍPIO DE TUDO
Quando uma lei extremamente cruel e desumana é aprovada para
testes, e seu bairro está prestes a se tornar um campo de batalha, onde você e
sua família, ou são assassinos ou são alvos, o que poderia fazer você
permanecer em um local tão perigoso e brutal como esse por uma noite inteira?
O dinheiro. Puramente dinheiro!
O Governo dos NFFA oferece uma gratificação de U$ 5 mil
dólares para cada cidadão de Staten Island, Nova York, permanecer em sua
residência durante toda a Noite de Purificação, e além disso, uma bonificação
extra para todos aqueles que “contribuírem” para a carnificina, cometendo
qualquer tipo de delito durante o período “sem-leis”.
A população carente e que cresceu como refém do crime,
rapidamente cai na lábia dos governantes e decide permanecer em sua residências
para tentar uma vida melhor com a bonificação que iriam receber.
Claro que com os NFFA, nada é tão fácil, e ao perceber que os
moradores não sairão as ruas para cometer delitos, mesmo sendo pagos por isso,
o Governo envia pequenos grupos de soldados e mercenários, especialmente para
contribuírem com os números de mortos, e assim, pelotões fortemente armados
invadem residências, igrejas e derrubam tudo que tiver que derrubar para
cumprirem os objetivos dos Pais Fundadores. E a intenção é óbvia, quanto mais
mortos, maior o sucesso do experimento, maior a chance de toda essa brutalidade
se espalhar para as demais cidades e estados norte-americanos.
É extremamente revoltante presenciarmos cenas de pura
violência e que mostram o pior lado do ser humano. Um governo que deveria zelar
por sua população financiando crimes contra os mais pobres e excluídos, e
apenas os tratando como números que pesam muito na balança da igualdade, e que
merecem ser expurgados para o Bem Maior. O local para esse ato chocante, não
foi escolhido a toa. Staten Island, uma das regiões mais periféricas de Nova
York, ao lado do Brooklyn, são localidades com grande concentração de moradores
negros e de baixa renda. Um lugar perfeito para pessoas aceitarem vender sua
própria segurança por algo tão simples como o dinheiro; algo simples porém que
não nasce na horta de qualquer um, muito menos em uma Staten Island dominada
pelo tráfico de drogas e de armas.
Agora, pare e preste atenção neste último parágrafo.
Qualquer semelhança com a nossa realidade não é mera coincidência!
James DeMonaco pegou muitas referências do mundo em que
vivemos e as inseriu de uma forma perturbadora e que tem um triste fundo de
verdade.
Em pleno ano de 2018, infelizmente somos vítimas de governos
opressores e políticos que propagam a violência e incentivam o ódio entre
pessoas de diferentes classes, gêneros e raças. Em “A primeira Noite de crime”
alguns personagens facilmente são lembrados pelo telespectador como referências
a pessoas que conhecemos do nosso cotidiano. Como aquela vizinha engraçada, o
adolescente que se vê sem opções e começa a trilhar o caminho mais fácil, a
família que se desmorona após perder entes queridos para o crime organizado, e
temos até um presidente branco e autoritário, que oprime sua população, aquela
que o elegeu na esperança de um governo mais justo, aquele político que faz as
diferenças entre as pessoas aumentarem, e a violência ir te buscar na sua
própria casa. Muito parecido com a vida real não é mesmo? ( Hello, Donald
Trump! ).
O diretor Gerard McMurray ( Fruitavale Station ) assume a
cadeira de DeMonaco e entrega um produto que lembra muito cenas que presenciamos
no nosso dia-a-dia. Violência das autoridades que deveriam proteger ao invés de
agredir; o crime se tornando atrativo aquelas pessoas desesperadas sem saber
aonde recorrer; um governo conspiratório e omisso que destrói cada ponte que
nos une. É cruel dizer isso, mas “A primeira Noite de crime” é um filme que
retrata muito bem a sociedade que está sendo criada para o futuro, e mesmo que
um Dia da Purificação pareça algo extremamente impossível de acontecer, nós já
vemos ele na nossa rotina. Ao ligarmos o noticiário e assistirmos os fatos do
dia, não parece que a carnificina da purificação está muito longe; pelo
contrário, ela parece estar ao nosso redor, em pequenas doses. Algo mais
diluído e não tão explícito como um feriado nacional, mas como uma realidade de
muitas cidades, que produzem todos os dias números de mortos que antes só eram
vistos em guerras.
A Noite de crime é toda noite; e durará por todas as noites
em que nossas autoridades se omitirem e pensarem apenas em seu próprio bolso.
Basta um breve olhar para enxergar todas as famílias que dependem de uma
esperança ou de um sonho para mudarem de vida; mas também basta um olhar para
destruir este sonho com a dura realidade que é o mundo que cerca os mais
pobres. Todos nós temos a oportunidade de dizer não e recusarmos o caminho do
crime, entretanto, como fazer se em muitos lugares a opção do caminho do bem
parece ser retirada da pauta da vida dos mais humildes?
É preciso muita garra, fibra, perseverança e apoio para
superar as tentações e pedras que são jogadas todos os dias na vida de quem
mais precisa, e tudo isso deve partir de nossa própria casa e família, porque
depender de aristocratas brancos e que nunca souberam o que é ser pobre, parece
ser algo incerto demais para arriscar.
Nosso bad-ass Dmitri
Além do roteiro profundo e intenso de James DeMonaco, “A
primeira Noite de crime” tem alguns outros destaques que valem muito a pena
serem citados.
A direção de Gerard McMurray é muito boa, e principalmente
as cenas de ação mostram ser o ponto forte do diretor, que usa e abusa de
cortes rápidos e que nos jogam dentro da ação; ainda mais quando quem está em
ação é Dmitri, nosso anti-herói que recebe o manto de Frank Grillo e faz bonito
em sua estreia na franquia.
Interpretado por Y’lan Noel ( Insecure ), Dmitri é um
gângster de enorme influência em State Island, e que se vê na obrigação de
proteger seus amigos e acima de tudo, sua paixão, Nya ( interpretada pela linda
Lex Scott Davis, de Superfly ). Os dois possuem uma ótima química em cena, e
são responsáveis pelos pontos mais altos do longa.
Noel é um verdadeiro Chuck Norris Nigga, sempre esbanjando
movimentos precisos em suas lutas, e derrubando um a um seus oponentes, seja
com poderosas armas de fogo, ou com seus braços definidos quebrando pescoços e
espalhando o sangue de seus inimigos quarteirão por quarteirão.
Sem dúvida, uma luta dele com o Sargento, de Frank Grillo,
seria um momento épico para a franquia, que a cada filme desenvolve muito bem
seus anti-heróis e seus princípios ( ou a falta deles ).
Lex Scott também dá um show quando tem que bancar a mulher
durona na hora do fight, ou quando tem que puxar a orelha de seu irmão Isaiah (
Joivan Wade ) para o menino retomar ao caminho da lei.
Marisa Tomei ( Dr, Updale, idealizadora do experimento da
Purificação ), Kristen Solis ( como a divertida Selina ) e Patch Darragh ( como
o ardiloso Chefe de Estado, que coordena os ataques a Staten Island ) também
são ótimas adições a franquia.
Rotimi Paul interpreta Skeletor, um maníaco que vê na noite
da purificação, sua verdadeira casa para fazer os piores horrores possíveis, o
cara é doentio e acreditem quando digo que todas as aparições de Skeletor são
de arrepiar. O psicopata assustaria até Charles Manson em seus piores dias.
A trilha sonora do filme lembra muito as músicas de filmes
que exploram os guetos norte-americanos, com uma batida forte e que segue o
número de projéteis que vão voando pelo caminho. E senão é a melhor trilha
sonora do mundo, também não é a pior.
Talvez o ponto mais baixo do longa seja quando ele se
encaminha para a metade, onde percebemos claramente os próximos passos do longa
e não sentimos aquele efeito-surpresa que faz cair nossos queixos. As
perseguições pelas ruas também não produzem um efeito que vimos nos outros
filmes da franquia, talvez por ser a primeira purificação de todas, e os
cidadãos estarem mais tímidos.
O último ato do filme é muito bom e temos muito do Bad-Ass
Dmitri na resolução do longa, como um homem que renasce, e que após quase
perder a vida, encontra o verdadeiro significado do respeito, e parece sair com
uma nova noção do que ele representa para seus colegas e vizinhos de bairro.
A primeira noite de crime é um ótimo entretenimento, onde
praticamente tudo funciona, e mesmo não sendo um filme perfeito, expõe o lado
mais cruel do ser humano de uma maneira muito oportuna, ideal para a nossa
atual realidade. É forte, intenso e mostra que cada vez mais, o homem precisa
tomar consciência de que é ele que faz o meio em que ele vive, e não o
contrário.
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